sábado, 24 de julho de 2010

Bem-informados!


Bem-informados os que leem todos os dias as páginas dos jornais, sabendo filtrar ideologias, polêmicas vazias e outras magias.

Bem-informados os que assistem à televisão todos os dias, selecionando os canais e os programas realmente informativos e educativos.

Bem-informados os que folheiam as revistas certas, escapando da fofoca, do boato, da ilusão, adquirindo verdadeiro conhecimento e entretenimento.

Bem-informados os que, informatizados, navegam na Internet, procurando os sites do saber e do lazer, numa verdadeira pesquisa e não por mera curiosidade.

Bem-informados os que participam de chats e listas de discussão virtuais, e transformam o superficial em encontro humano.

Bem-informados os que freqüentam o cinema (e as videolocadoras), e se deixam seduzir pelos efeitos especiais, sem esquecer o que é mais especial ainda: a imagem eloqüente.

Bem-informados os que amam o teatro, e interpretam o papel insubstituível daquele que se desoprima na catarse, na voz ao vivo, no corpo em chamas.

Bem-informados os que ouvem rádio, e se deliciam com as estações da boa música, da entrevista bem feita, inteligente, da notícia objetiva, mas não acrítica.

Bem-informados os que vão aos museus e cortejam as musas que cantam nos quadros, sussurram nas esculturas e passeiam nas instalações.

Bem-informados os que prestigiam a arte onde quer que a encontrem, no salão ou na salinha, na avenida ou na pracinha, e rendem seu culto a cada cintilação da beleza.

Bem-informados os que veem na arquitetura contemporânea a inspiração dos antigos templos e o mistério das pirâmides.

Bem-informados os que leem os livros capazes de, em suas asas, levar-nos para dentro de nós mesmos, sem desprezar o mundo.

Bem-informados os que leem os livros novos, com a condição de que não sejam descartáveis.

Bem-informados os que leem os livros antigos, com a condição de que sejam renovadores.

Bem-informados os que leem os livros de poemas, e dão à poesia um lugar de honra no mundo dos cálculos inescrupulosos.

Bem-informados os que leem os livros que falam de outros livros, e, nessa busca dentro da busca, encontram o prazer de ler elevado à quinta potência.

Bem-informados os que têm sede e fome de verdade, e realmente a procuram nos caminhos e descaminhos da Idade Mídia.

Bem-informados seremos se soubermos, com critério e bom senso, exercitar a arte da palavra e da leitura, distinguindo para apreciar, e divulgando nosso amor à cultura sem perder o bom humor.

Jamais.

Trechos extraídos do livro

A arte da palavra De Gabriel Perissé

Editora Manole 1ª edição

terça-feira, 20 de julho de 2010

O que é científico?


"Era uma vez uma aldeia às margens de um rio, rio imenso cujo lado de lá não se via, as águas passavam sem parar, ora mansas, ora furiosas, rio que fascinava e dava medo, muitos haviam morrido em suas águas misteriosas, e por medo e fascínio os aldeões haviam construído altares à suas margens, neles o fogo estava sempre aceso, e ao redor deles se ouviam as canções e os poemas que artistas haviam composto sob o encantamento do rio se fim.

O rio era morada de muitos seres misteriosos. Alguns repentinamente saltavam de suas águas, para logo depois mergulhar e desaparecer. Outros, deles só se viam os dorsos que se mostravam na superfície das águas. E, havia as sombras que se podiam ser vistas deslizando das profundezas, sem nunca subir à superfície. Contava-se, nas conversas à roda do fogo, que havia monstros, dragões, sereias e iaras naquelas águas, sendo que alguns suspeitavam mesmo que o rio fosse morada de deuses. E todos se perguntavam sobre os outros seres, nunca vistos, de número indefinido, de formas impensadas, de movimentos desconhecidos, que morariam nas profundezaas escuras do rio.


Mas tudo eram suposições. Os moradores da aldeia viam de longe e suspeitavam - mas nunca haviam conseguido capturar uma única criatura das que habitavam o rio: todas as suas magias, encantações, filosofias e religiões haviam sido inúteis: haviam produzido muitos livros mas não haviam conseguido capturar nenhuma das criaturas do rio.


Assim foi, por gerações sem conta. Até que um dos aldeões pensou um objeto jamais pensado. (O pensamento é uma coisa existindo na imaginação antes de ela se tornar real. A mente é útero. A imaginação a fecunda. Forma-se um feto: pensamento. Aí ele nasce...) Ele imaginou um objeto para pegar as criaturas do rio. Pensou e fez. Objeto estranho: uma porção de buracos amarrados por barbantes. Os buracos eram para deixar passar o que não se desejava pegar: a água. Os barbantes eram necessários para se pegar o que se deseja pegar: os peixes. Ele teceu uma rede.


Todos se riram quando ele caminhou na direção do rio com a rede que tecera. Riram-se dos buracos dela. Ele nem ligou. Armou a rede como pôde e foi dormir. No dia seguinte, ao puxar a rede, viu que nela se encontrava, presa, enroscada, uma criatura do rio: um peixe dourado.


Foi aquele alvoroço. Uns ficaram com raiva. Tinham estado tentando pegar as criaturas do rio com fórmulas sagradas, sem sucesso. Disseram que a rede era objeto de feitiçaria. Quando o homem lhes mostrou o peixe dourado que a sua rede apanhara, eles fecharam os olhos e o ameaçaram com a fogueira.

Outros ficaram alegres e trataram de aprender a arte de fazer redes. Os tipos mais variados de redes foram inventados. Redondas, compridas, de malhas grandes, de malhas pequenas, umas para serem lançadas, outras para ficar à espera, outras para ser arrastadas. Cada rede pegava um tipo diferente de peixe.


Os pescadores-fabricantes de redes ficaram muito importantes.
Porque os peixes que eles penscavam tinham poderem maravilhosos para diminuir o sofrimento e aumentar o prazer. Havia peixes que se prestavam para serem comidos, para curar doenças, para tirar a dor, para fazer voar, para fertilizar os campos e até mesmo para matar. Sua arte de pescar lhes deu grande poder e prestígio, e, eles passaram a ser muito respeitados e invejados.

Os pescadores-fabricantes de redes se organizaram numa confraria. Para pertencer à confraria, era necessário que o postulante soubesse tecer redes e que apresentasse, como prova de sua competência, um peixe pescado com as redes que ele mesmo tecera.


Mas uma coisa estranha aconteceu. De tanto tecer redes, pescar peixes e falar sobre redes e peixes, os membros da confraria acabaram por esquecer a linguagem que os habitantes da aldeia haviam falado sempre e ainda falavam. Puseram, em seu lugar, uma linguagem apropriada a suas redes e seus peixes que tinha que ser falada por todos os seus membros, sob pena de expulsão. A nova linguagem recebeu o nome de ictiolalês (do grego ichthys = "peixe" + "fala"). Mas, como bem disse Wittgenstein alguns séculos depois, "os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo". Meu mundo é aquilo sobre o que posso falar. A linguagem estabelece uma ontologia. Os membros da confraria, por força de seus hábitos de linguagem, passaram a pensar que só era real aquilo sobre o que eles sabiam falar, isto é, aquilo que era pescado com redes e falado em ictiolalês. Qualquer coisa que não fosse peixe, que não fosse apanhado em suas redes, que não pudesse ser falado em ictiolalês, eles recusavam e diziam: "Não é real".

Quando as pessoas lhes falavam de nuvens, eles diziam: "Com que rede esse peixe foi pescado?" A pessoa respondia: "Não foi pescado, não é peixe". Eles punham logo fim à conversa: "Não é real". O mesmo acontecia se as pessoas lhes falavam de cores, cheiros, sentimentos, música, poesia, amor, felicidade. Essas coisas, não há redes de barbante que as peguem. A fala era rejeitada com o julgamento final: " Se não foi pescado no rio com rede aprovada não é real".


As redes usadas pelos membros da confraria eram boas? Muito boas.

Os peixes pescados pelos membros da confraria eram bons? Muito bons.


As redes usadas pelos membros da confraria se prestavam para pescar tudo o que existia no mundo? Não. Há muita coisa no mundo, muita coisa mesmo, que as redes dos membros da confraria não conseguem pegar. São criaturas mais leves, que exigem redes de outro tipo, mais sutis, mais delicadas. E, no entando, são absolutamente reais. Só que não nadam no rio.


Meu colega aposentado, com todas as credenciais e titulações, mostrou para os colegas um sabiá que ele mesmo criara. Fez o sabiá cantar para eles, e eles disseram: "Não foi pego com as redes regulamentares; não é real; não sabemos o que é um sabiá; não sabemos o que é o canto de um sabiá..."


Sua pergunta está respondida, meu amigo: o que é científico?
Resposta: é aquilo que caiu nas redes reconhecidas pela confraria dos cientistas. Cientistas são aqueles que pescam no grande rio...

Mas há também os céus e as matas que se enchem de cantos de sabiás... Lá as redes dos cientistas ficam sempre vazias.


Texto extraído do livro de Rubem Alves, intitulado Entre a Ciência e a sapiência: o dilema da educação (14. ed. São Paulo: Loyola, 2005).